No Dia Internacional dos Povos Indígenas Myriam Krexu, a primeira cirurgiã cardiovascular indígena do Brasil, conversa com a Elsevier
9 de agosto de 2022
Por Elsevier
Em comemoração ao Dia Internacional dos Povos Indígenas, data celebrada mundialmente no dia 9 de agosto pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Elsevier Brasil traz uma entrevista exclusiva com a primeira cirurgiã cardiovascular indígena do Brasil, a médica Myriam Krexu, do povo Guarani Mbyá. Ela conta sobre sua história de luta, de perseverança e de muito amor por um futuro de infinitas possibilidades por meio da medicina, da ciência e da pesquisa sem esquecer as próprias raízes. Myrian, nascida no município de Xanxerê, no interior de Santa Catarina, viveu os primeiros anos de vida na Terra Indígena Rio das Cobras, maior aldeia em tamanho e população do estado do Paraná, pertencente à etnia Guarani Mbyá e localizada à margem esquerda do Rio Guarani.
A cirurgiã conversou com Samara Santos, membro do comitê de I&D da Elsevier e analista de treinamentos.
Boa leitura!
Myriam, você se apaixonou pela medicina quando quebrou o braço ainda criança, mas como essa paixão se desenvolveu até chegar na especialização em medicina cardiovascular?
Myriam: Normalmente, as pessoas não imaginam como uma pessoa que nasceu e cresceu dentro de uma comunidade indígena pode se tornar médica. Mas eu costumo falar que a arte de curar é tão antiga quanto a dor. Se a dor existe, sempre foi necessário que fosse tratada de alguma maneira. Isso fala muito também sobre os povos indígenas, assim como outros povos ancestrais que tiveram que desenvolver sua maneira de curar. Então curar, na verdade, é um processo muito natural dentro das aldeias, apesar de ainda ser raro termos médicos indígenas.
A questão de quando eu quebrei o braço é que até esse momento eu não sabia o que era a figura do médico. Meu pai me falou que iria me levar para ser atendida e quando eu perguntei para ele o que era um médico, ele disse que era aquela pessoa que consertava gente.
Eu era uma criança muito travessa e sempre gostei de desmontar as coisas e remontá-las. Eu gostava de consertar as coisas, então quis consertar gente. Mas todo mundo fala “estranho, né, você quebrou o braço, como é que você se tornou uma pessoa que cuida de coração?”. Sempre gosto de usar esse exemplo: se você pudesse consertar alguma coisa, você iria mexer nas engrenagens ou gostaria de mexer diretamente no motor? Na faculdade de medicina acabei me apaixonando mesmo pelo motor. Gosto de falar que o coração é o motorzinho de tudo isso, enquanto o cérebro é o painel de controle..
Como funciona para você o equilíbrio entre o conhecimento científico e o tradicional?
Myriam: Bom, uma das coisas que as pessoas desconhecem é que antes dessa trajetória - de iniciar especialização em cirurgia cardíaca - eu trabalhei com saúde indígena. Eu me formei e fui médica da minha própria aldeia e de outras comunidades indígenas, foram três anos nessa frente.
Quando se é indígena, você tem uma visão das coisas,quando se é médico, tem outras visões. Foi um pouco diferente juntar isso. Até mesmo as definições de saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde) unem vários ângulos, não somente os aspectos físicos, mas também os sociais, emocionais e espirituais. E os povos indígenas têm seu próprio modo de vida e de cuidar de sua saúde.
Inicialmente, o desafio foi unir a medicina alopática, a medicina científica e
medicina tradicional indígena. Acredito que como médica indígena seja um pouco mais fácil saber o limite de cada uma dessas atribuições. Entender qual é o meu limite enquanto médica e como eu posso trabalhar junto com a comunidade para trazer o processo de cura sem interferir na medicina tradicional. A realidade é que as duas coisas não são excludentes, elas se complementam muito.
É um equívoco por parte dos profissionais de saúde que vão às aldeias querer curar as coisas apenas com remédio, com antibiótico, com o que é industrializado. É uma população que já vem de uma tradição de chá de ervas, que tem o seu próprio conhecimento para curar muitas doenças. Tanto é que a nossa medicina atual evoluiu muito a partir da observação de povos indígenas e de povos ancestrais que tinham contato com a natureza.
Muitos medicamentos que nós usamos hoje vieram de conhecimentos indígenas, então não preciso excluir essa parte tradicional, eu posso unir. Particularmente, sou uma pessoa que além de trazer o conhecimento da minha família, gosto de estudar sobre outras plantas e outros tipos de medicinas alternativas para evitar esse consumo exagerado de medicamentos sintéticos, que é um problema não só nas populações indígenas como também nas outras populações.
Tenho alguns projetos nesse sentido, de ervas medicinais e de resgate da medicina tradicional indígena, para que pelo menos em resfriados ou coisas mais simples, usemos um paracetamol, não necessariamente um antibiótico. Sendo médica e indígena, acho isso importante para o resgate cultural.
Você saiu da aldeia ainda criança para estudar. Considera que esse foi um primeiro marco na sua vida?
Myriam: Olha, eu tenho alguns marcos que trago bem claros na minha mente. O primeiro foi ter quebrado o braço, ter voltado para casa com aquilo na cabeça enquanto eu comia um mingauzinho da minha avó, que ela falava que curava todas as dores, quando eu decidi o que queria fazer. O segundo realmente foi quando eu saí da aldeia, não só por ter me separado da minha avó, mas do meu irmão. O terceiro marco foi ir para a universidade.
Ter saído da aldeia ainda criança e me deparado com o mundo foi chocante. Depois, fui morar num lugar onde não existiam pessoas nem sequer parecidas comigo, uma cidade com comunidades italiana e alemã, não havia outros indígenas, pessoas da minha cor, pessoas que tinham a vivência da minha cultura. Eu era um patinho feio. Mas foi importante porque a gente (o ser humano) é extremamente adaptável.
Vejo que as pessoas que ficam mais tempo na comunidade têm bastante dificuldade para sair para estudar. Talvez a minha adaptação na universidade tenha sido um pouco mais fácil porque eu saí um pouco mais cedo da aldeia. Além disso, tive um apoio comunitário [aldeia] muito grande quando estava na faculdade. As pessoas nem imaginam o que passam os estudantes indígenas. Eu sempre digo que um dos nossos menores problemas é estudar. Sair da comunidade, do seio da família, é difícil para todo mundo. E a gente ainda se depara com dificuldades financeiras. Eu passei fome nessa época porque ou pagava aluguel ou comia ou pagava material para estudar. E uma das coisas mais importantes foi o apoio da minha comunidade.
Falando em apoio. Você aprendeu a ler com a sua avó, correto? Qual o papel das mulheres na transmissão do conhecimento dentro das aldeias?
Myriam: A mulher tem muito esse papel de ensino nas comunidades indígenas. Nós demoramos a desenvolver a escrita das coisas, por exemplo, então costumamos falar que as mulheres, as anciãs, as pessoas mais velhas da aldeia são nossas bibliotecas, pois essa é a maneira que a gente tem de transmitir conhecimento.
Se eu uso o meu cabelo assim é porque tem uma história, o meu brinco é assim porque ele conta uma história, e isso é muito importante dentro das comunidades.
Eu aprendi a ler com a minha avó, ela era muito sábia. Aprendeu a ler sozinha e quis passar isso porque, na sabedoria dela, já tinha consciência do quanto a educação seria importante para o nosso futuro. Mas não só isso, minha avó me ensinou a importância da terra, do plantio, do alimento, de como fazer o trabalho manual, como fazer um chazinho, cozinhar. Eu me vejo na minha avó e acredito que, onde ela esteja, ela se vê em mim também.
Importante essa questão da gente valorizar o conhecimento das mulheres, especialmente das mulheres mais velhas. Dentro da aldeia é parar para escutar,
entender que quando essas avós se vão, se você não escutou essa biblioteca, ela foi queimada, então eu não posso recorrer mais a um livro fechado.
Trazendo o aspecto dos avanços na medicina. Como você vê a transformação digital em sua área?
Myriam: É impossível a gente ter acesso a todas as informações, a todos os avanços que estão acontecendo ao mesmo tempo. E algo que me incomoda muito é que algumas notícias ou tratamentos se espalhem - mesmo dentro do meio médico - sem evidência científica. Portanto, acredito que o acesso a plataformas de qualidade e validadas seja muito importante para o avanço médico, para que haja um tratamento correto, para que não se espalhem tratamentos equivocados, para parar com essa cadeia do “disse me disse”. É de extrema relevância que a gente tenha acesso à informação médica de qualidade, medicina baseada em evidências científicas sérias.
Acredito muito na evolução científica. A gente tem que investir em educação e em pesquisa. Às vezes, vejo notícias que me emocionam, de pessoas que fizeram descobertas com pouquíssimos recursos e eu fico pensando “dentro desse país que é o Brasil, com tanta gente inteligente com vontade de mudar as coisas, por que que não se investe mais?”. Fico imaginando essas pessoas de boa vontade, se elas tivessem mais recursos, mais incentivos à pesquisa, onde estariam. Onde nós estaríamos, coletivamente, se tivéssemos mais educação e pesquisa no Brasil?
Myriam Krexu também falou sobre o impacto que a história dela promove nas novas gerações indígenas e os desafios na carreira. Assista a entrevista completa em nosso canal no YouTube, clique aqui abre em uma nova guia/janela